terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Dico

Ai, mataram meu carneiro! E cortaram os quatro ‘pé’...”, era o que cantarolava o Dico todos os dias à porta de um bar miúdo e sujo no centro da cidade. Por aqueles tempos eu não parava em emprego algum. Pululava de bairro em bairro. Sempre distante da felicidade das campanhas de publicidade, sempre distante das notícias do mundo, sempre distante das pessoas. Amigo íntimo dos bares e cabarés.
            Nunca conheci o Dico a ponto de travar uma conversar com ele. Sempre me pareceu um ser sobrenatural. Na verdade, eu nunca o ouvi falar com ninguém. Ele chegava ao balcão, murmurava algo ao balconista, um som indecifrável, quase gutural, e este prontamente o atendia com uma dose de conhaque e uma lata de cerveja. Ambas eram consumidas em poucos minutos, já que a cada gole no conhaque, Dico virava sedentas e refrescantes goladas na lata de cerveja gelada. Pedia outra vez a mesma combinação, de novo com o mesmo murmúrio indecifrável. Em seguida a terceira, a quarta, a quinta... e o show tinha seu início. Cantigas regionalistas, marchinhas de carnaval, canções de amor entre jovens do sertão que se separavam porque o rapaz precisava partir rumo à cidade grande e fazer a vida (sempre me vinha a cabeça o velho Jura desdentado com essas canções). O Dico cantava com uma voz fanhosa e rouca, o ritmo parecia sempre o mesmo, assim como a melodia. Um ar de melancolia vibrava na garganta e os olhos, amarelados e de ralas pálpebras, marejavam.
            Ninguém reclamava daquela cantoria do Dico, até mesmo porque não se podia pedir muito de um bar e região como aqueles. Por vezes, ao término de alguma canção tristonha, percebia-se aqui e ali algum malogrado bêbado a suspirar e gemer identificados que ficavam com a história das canções. Alguns aplaudiam e outros chegavam a agradecer e louvar o velho Dico:
            - Valeu, Dico! Tá inspirado hoje o cabra!
            Eu da minha parte apenas observava. Sentia-me bem ao lado de pessoas assim. Tinha um quê de familiaridade, me seduzia a autenticidade daqueles tipos trôpegos e fedorentos. Éramos bebuns de sujos botecos alheios às nossas próprias condições, aos bombardeios no Iraque, à primavera árabe, à posse do primeiro presidente negro dos Estados Unidos e da primeira presidenta mulher do Brasil. Solitários. Muitos de nós trilhávamos o caminho dos caramujos. Não esperávamos nada de tudo, não calculávamos o que viria a ser de nós amanhã ao acordar com latejantes dores de cabeça e sedentos por água ou café, pouco nos importava que as mulheres não gostassem de homens bêbados e exalando tabaco. Os famosos “bocas de cinzeiro”. Por vezes, tudo se resumia ao queimar de um cigarro. Lento, saboroso, ultrajante. Era isso o que éramos. Transformávamos o fado da solidão em conforto, afinal podíamos pegá-la, amassá-la, arremessá-la contra o muro dos condicionamentos sociais e aí acontecia o fenômeno do nosso reconforto. Solidão é a liberdade dos que se sentem oprimidos. Deveriam empregar isso aos dicionários, além de incluir convenção como a palavra antônima a sua.
            E o Dico nos materializava e interpretava. Não por suas canções, mas por ser daquele jeito, um homem que bebia sem pronunciar palavra, mas que cantava, aliás grunhia mal contadas histórias com aquele ar de extraterrestre. O Dico era um além-ser, uma espécie de trombeta “incelestial”, ou melhor, era a trombeta do submundo, do centro da cidade. Sempre melancólica, um tanto gaga, fanha, nada conhecedora dos ditames da língua. Aliás, pra quê ditames? Bêbados nunca dizem nada mesmo. São meros representativos do não-ser. Ouvia-se em algum canto do balcão algo referente ao futebol e às prostitutas, aos relacionamentos malogrados, “Aquela maldita! Só fingia que me amava. Eu morro se ela estiver com outro, morro!”, às desilusões, brindes de felicidades fáceis e felicitações hipócritas, mas nada que desfizesse aquela áurea, aliás, aquele estado pegajoso, pútrido e infértil que reunia algumas poucas pessoas num mesmo lugar em busca de uma efêmera embriaguez, propriedade de todo e qualquer sedativo, e de um trocar trôpego de passos. E o Dico a nos cantarolar, a nos envolver nesse clima de nada, um vazio de coisas materiais, mas repleto de movimentos e sensações. Éramos como árvores a reverberar no lixo. Nutria-nos o álcool e a podridão ao passo que, embalados pelas marchinhas carnavalescas de Dico e a ranhura de sua voz, celebrávamos o ritual cotidiano dos pequenos suicídios.

            E é claro que eu adorava o Dico! Ansiava pela sua chegada. Queria vê-lo grunhir pedindo seu conhaque e sua lata de cerveja, contemplava-o a engoli-las, a degustá-las e depois visualizava o processo de sonolência que lhe tomava conta: seus ombros pendiam à frente da cabeça, o tronco se curvava, apoiava-se com um dos cotovelos no balcão, os olhos iam apagando e uma nuvem, a nuvem do vago, obscurecia-os. A boca sedenta sempre a salivar gritando por mais conhaque e cerveja. Ele vivia o seu nirvana particular e quando, em movimentos lentos e peristálticos, o pomo de adão na garganta se manifestava, uma angustia me tomava conta. Ele ia iniciar o grunhir de alguma canção triste e todos nos sentiríamos bem, alheios, feios. Dico nos fazia sentir autênticos.