sábado, 29 de dezembro de 2012

Noite de Natal


Certa vez, numa chuvosa noite de Natal eu me entristeci. Eu sabia que uma pessoa muito próxima de mim usava drogas; pó. Ouvia os burburinhos das pessoas. De todas as manifestações vocais, são as palavras murmuradas as que mais devemos temer, elas agem sorrateiras e, por vezes, se camuflam, soam farfalhadas como se estivessem a querer se impregnar, meticulosamente, nos cenários das nossas vazias existências e assim, como um corpo estranho no organismo, nos corroem as vísceras.
Eu compreendi o que diziam duas pessoas que se encontravam em minha casa naquela noite de Natal. Diziam não, murmuravam. “Veja, ele busca as drogas numa dessas favelas, não sei se no Morro do Piolho, ou na Serra Pelada.” “Psiu, fale mais baixo, acho que a família ainda não sabe...” “ Deixe de falsas ingenuidades, claro que sabem. No mínimo, diante de tal situação, emudecem-se.” “Cínicos, deveriam conversar, mostrar-lhe a realidade desse caminho, nunca deixaria que um familiar meu adentra-se por tão obscuras veredas.” “Deixa de tolice, ele desde sempre foi um renegado, as regalias foram sempre destinadas ao mais novo...” “Dizem-se cristão, ainda!? Despautério, despautério!!!” “Deixemos de lado esse papo, veja como o garoto nos observa, disfarce. Vamos perguntar se têm mais cerveja, esse pernil está uma delícia, foi muito bem temperado!” “No mínimo deixaram curtindo no tempero desde o dia anterior, como é a praxe. Vamos comer outro pedaço!”
Eles tinham razão, nós sabíamos. Mas não só calávamos como também vendávamos os olhos e tapávamos os ouvidos. Talvez a isso chamam hipocrisia. Acreditar que estão bem as coisas, que estão bem as pessoas, que estamos bem quando, na verdade, as palavras ao nosso redor vão se carregando em murmúrios, em farfalhos. Os acenos vagos e olhares imprecisos vão-se nos acometendo de todos os cantos. As formalidades frígidas não passam de “Oi, como está? Que linda noite de Natal, não? Parabéns pelo pernil, estava ótimo. E as cervejas geladas até o ponto certo!” Estes são pequenos sinais de que nem tudo anda bem, que entre o céu e a terra sabe-se de mais coisas do que nos é permitido saber.
Vi quando a minha pessoa próxima saiu, desceu as escadas, cumprimentou na rua pessoas que eu não conhecia, perguntou-lhes se era agora, se não poderia ser mais tarde, os outros disseram que não, que queriam e queriam agora. E então foram. Serviu-me de acalento na hora, mas não me serve agora: foram e foram felizes. Certos de que algo bom, prazeroso, estaria por vir.
Voltei para dentro de casa. A noite era fria, mas em casa estava morno. Meus familiares, amigos e conhecidos comiam e bebiam, alheios a tudo. Aliás, cientes de tudo, mas as aparências são os mais fortes escudos. Vestimo-las todos os dias. Travamos bons diálogos. Casuais e efêmeros. Tomamos um ônibus, trabalhamos, prestamos serviços, vendemos coisas. Lemos, sentamos e conversamos mais. E em tudo isso, ela sempre está lá, como uma herança maldita, um traço hereditário. As aparências: cálidas, amenas, brilhantes, ternas, simpáticas...
Entrei no banheiro, olhei-me. Pareceu-me que os olhos estavam cavados. Vi-me com o rosto toscamente marcado, uma cicatriz enorme na face esquerda, uma boca de lábios gretados, umas sobrancelhas quase inexistentes, uns ralos fios grossos no queixo. Levei as mãos ao rosto como se quisesse comprovar o espetáculo aterrador e percebi que minhas mãos estavam enrugadas, repletas de nós, as unhas amarelecidas. Meus olhos estavam injetados. Via-me velho, era como se eu estivesse diante da eternidade. É este o aspecto da eternidade, encanecido. A eternidade é um corpo pesado, amarelo, de cheiro forte. A eternidade é crua e viscosa, tem o firme propósito de acabar, mas existe uma força que a impele a permanecer num constante estado de putrefação.
Sim, usamos drogas. Sim, somos todos hipócritas!
Quando deixei de mirar o espelho, passada a vertigem da eternidade, vesti-me de renovadas aparências e fui comer mais pernil.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Hipocrisia por um hipócrita


Não é de todo tola a alcunha destinada ao dicionário de Pai dos Burros. Existe, de forma clara, a semelhança de comportamento entre a intransigência desse animal quando empaca e dos seres humanos quando não se convencem por si mesmos das próprias convicções. Não se mostra necessário consultar ao Oráculo da nossa ignorância, por exemplo, o significado (e é incrível como o significado das coisas tomam dimensões hiperbolizadas quando o objeto da significação nos é introduzido, doloridamente, pelo reto!) da palavra hipocrisia. Ora, claro está o que comumente queremos chamar de hipocrisia, é só nos tornarmos cegos. Mas não uma cegueira escura, aquela branca onde parecemos ser náufragos num mar de leite. Um exemplo de hipocrisia é o altruísmo e idoneidades humanas. Somos a ideia que temos de nós mesmos, acreditamos nas coisas que criamos e acabamos por sermos domados por elas. Mais um reles e ínfimo demonstrativo da nossa mísera condição.
            Imaginemos se oitenta por cento da população votasse em branco em eleições diretas. Não deixariam de exercer dentro das normas cívicas o seu direito enquanto cidadãos, mas como poderíamos chamar a tal fenômeno? Talvez anarquia, talvez motim, talvez desprezo ou displicência, revolução, inapetência, amoral, infâmia, despautério, democrático, antidemocrático, infâmia... Poderíamos nomeá-lo conforme a nossa própria doutrinação. E doutrina, nada mais é que fetiche, porque nos gratifica e calam as nossas necessidades, sejam elas de ordem sexual ou racional ( o que não deixa de ser sexual também!).
            Este hipócrita que vos fala vê que, em entrelinhas, até os incrédulos clamam aos deuses pelo alvejar de suas próprias máculas. 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Construção do psiquê de um personagens em Suicídios Exemplares, de Enrique Vila Matas


Eu prefiro ler romances. São bojudos, lineares. Há quem prefira o conto. Eu também gosto de contos. Por esses dias deparei-me com “Suicídios Exemplares” de Vila Matas, autor espanhol. E gostei muito do que li. Existe em mim, e sobre isso já deixei um texto inteiro para dissecar o porquê, uma forte inclinação ao existencialismo, à náusea aparentemente refreada pela ideia que temos de quem somos por essa vida rarefeita, impressa aos borrões frígidos do estúpido. Do tesão, do prazer, da magnanimidade da vida não consigo dizer o contrário: são aparências.
            Mas, quero dizer do Vila Matas e seus personagens suicidas. Existe um misto de Borges e Sabato nos seus contos: um clima que devaneia entre o prosaico e o fatídico, entre a fantasia e a sua abstinência. Gosto de ler a literatura e enxergar a veia artística do escritor, perceber os meandros por qual adentram os seus raciocínios, destrinchar as alegorias e metáforas que criam seus enredos. E venho dizer, em alto e claro som, que seus contos são sim, de cunho existencialista. Salve Sartre! A linearidade aqui tem nome: fracasso. O ato de se suicidar é posto em evidência, como um elemento etéreo, revigorante, ideológico e, até mesmo, como representação de arte. As personagens, fracassadas, descongestionadas de interjeições, inferiorizadas pela vida, veem na morte um ato de liberdade, o único realmente livre. O suicídio é a negação do imperativo “viver”, é o lado sólido da vida.
            Quem gosta mesmo de literatura, se deliciará com os trâmites do autor em pintar a psique de suas personagens que caminha por referências inúmeras, até mesmo referências inexistentes.
            Não é uma apologia ao suicídio, trata-se de uma canção melancólica sobre a opressão de ter que viver!

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

À Sabato


Não foi por acaso que me deparei com o romance “O túnel” do argentino Ernesto Sabato. Eu precisava de algo em que respaldar a minha vida, em que embasá-la. Após os primeiros capítulos forjou-se em fogo na minha alma a pergunta “E eu, sou um túnel também?”.
            Trata-se de um romance sólido, de uma única grande metáfora: o existencialismo. Diante da perenidade da vida, o enredo, ou melhor, a trama mostra-nos que em analogia à isso as pessoas e os acontecimentos que se apresentam, mesmo os nossos próprios pensamentos e raciocínios, são fugazes, são vagos, difíceis de se delinear, de empregar forma.
            Mas, não foi propriamente o romance deste mestre argentino que me impulsionou a escrever este texto. Talvez o tenha me engendrado a própria existência. A minha ideia fixa (já não consigo mais chamar aos meus objetivos de ‘sonho’) é ser um escritor. Ser um escritor é a minha ideia fixa, aquilo com o qual eu norteio os meus raciocínios quando a minha cabeça parece ser um inferno, repleto de labaredas praguejantes, ardentes, momentâneas, perdidas, facilmente substituídas. Pensamentos impenetráveis aos outros. Minha personalidade se molda com uma facilidade que espanta até a mim mesmo. São regidas por esses momentos de pura lógica fantasiosa. Sim, sou um túnel como Juan Pablo, a personagem central do romance de Sabato que, com uma habilidade de desconcertante clareza, nos abriu todas as possibilidades de desenvolver o caráter psicológico de uma personagem. Fez-me entender, de forma ridiculamente simples, a obra de Sartre, ou talvez seja melhor dizer, a ideia fixa de Sartre!
            Deus, tenho lido tantos bons livros! Ótimos livros! Capazes de alegrar qualquer espírito. Mas me apego a obras obscuras, de personagens solitários, que vivem sua solidão em meio ao asco das outras existências; as ultrajantes existências da frivolidade e da fealdade hipócritas dos seres humanos.
            Acho melhor parar por aqui. Vou deixar de me esclarecer essas coisas, porque assim, o máximo que consigo é obscurecer as ideias dos poucos leitores deste blog. Aliás, começo a ter nojo deste blog. É fruto da minha fealdade. Deus, não quero ter nojo da minha ideia fixa... Mas, talvez seja necessário, seja o certo a fazer. O nojo é um sentimento, o asco é o mais belo sentimento que um ser humano possa vir a ter. O asco é um grande símbolo, sabiam? Quando você sente asco das suas atitudes, dos seus trejeitos, das suas decisões, do seu estado de vida, você passa a ser uma pessoa melhor. Sim, claro está. Uma pessoa boa e sem vaidades. É como ser frígido, quando a excitação não aflora. A verdade é terrível, é tenebrosa! Como é ruim ser sábio nos dias de hoje, ter a ciência de que viver em meio a multidões requererá de você uma adesão à sua própria sabedoria é uma ideia assustadora, aterradora, exasperante! É impossível ler tantos livros e viver dignamente. Como o conseguiram tantos e tantos autores? Como puderam viver tanto tempo, como conseguiram se sociabilizar?
            Esse é o grande fado: o túnel!
            Obrigado Ernesto Sabato!