Certa
vez, numa chuvosa noite de Natal eu me entristeci. Eu sabia que uma pessoa muito
próxima de mim usava drogas; pó. Ouvia os burburinhos das pessoas. De todas as
manifestações vocais, são as palavras murmuradas as que mais devemos temer,
elas agem sorrateiras e, por vezes, se camuflam, soam farfalhadas como se
estivessem a querer se impregnar, meticulosamente, nos cenários das nossas
vazias existências e assim, como um corpo estranho no organismo, nos corroem as
vísceras.
Eu compreendi o que diziam duas pessoas que se
encontravam em minha casa naquela noite de Natal. Diziam não, murmuravam. “Veja,
ele busca as drogas numa dessas favelas, não sei se no Morro do Piolho, ou na
Serra Pelada.” “Psiu, fale mais baixo, acho que a família ainda não sabe...” “
Deixe de falsas ingenuidades, claro que sabem. No mínimo, diante de tal
situação, emudecem-se.” “Cínicos, deveriam conversar, mostrar-lhe a realidade
desse caminho, nunca deixaria que um familiar meu adentra-se por tão obscuras
veredas.” “Deixa de tolice, ele desde sempre foi um renegado, as regalias foram
sempre destinadas ao mais novo...” “Dizem-se cristão, ainda!? Despautério,
despautério!!!” “Deixemos de lado esse papo, veja como o garoto nos observa,
disfarce. Vamos perguntar se têm mais cerveja, esse pernil está uma delícia,
foi muito bem temperado!” “No mínimo deixaram curtindo no tempero desde o dia
anterior, como é a praxe. Vamos comer outro pedaço!”
Eles tinham razão, nós sabíamos. Mas não só calávamos como também
vendávamos os olhos e tapávamos os ouvidos. Talvez a isso chamam hipocrisia. Acreditar
que estão bem as coisas, que estão bem as pessoas, que estamos bem quando, na
verdade, as palavras ao nosso redor vão se carregando em murmúrios, em
farfalhos. Os acenos vagos e olhares imprecisos vão-se nos acometendo de todos
os cantos. As formalidades frígidas não passam de “Oi, como está? Que linda
noite de Natal, não? Parabéns pelo pernil, estava ótimo. E as cervejas geladas
até o ponto certo!” Estes são pequenos sinais de que nem tudo anda bem, que
entre o céu e a terra sabe-se de mais coisas do que nos é permitido saber.
Vi quando a minha pessoa próxima saiu, desceu as escadas,
cumprimentou na rua pessoas que eu não conhecia, perguntou-lhes se era agora,
se não poderia ser mais tarde, os outros disseram que não, que queriam e
queriam agora. E então foram. Serviu-me de acalento na hora, mas não me serve
agora: foram e foram felizes. Certos de que algo bom, prazeroso, estaria por
vir.
Voltei para dentro de casa. A noite era fria, mas em casa
estava morno. Meus familiares, amigos e conhecidos comiam e bebiam, alheios a
tudo. Aliás, cientes de tudo, mas as aparências são os mais fortes escudos.
Vestimo-las todos os dias. Travamos bons diálogos. Casuais e efêmeros. Tomamos
um ônibus, trabalhamos, prestamos serviços, vendemos coisas. Lemos, sentamos e
conversamos mais. E em tudo isso, ela sempre está lá, como uma herança maldita,
um traço hereditário. As aparências: cálidas, amenas, brilhantes, ternas,
simpáticas...
Entrei no banheiro, olhei-me. Pareceu-me que os olhos
estavam cavados. Vi-me com o rosto toscamente marcado, uma cicatriz enorme na
face esquerda, uma boca de lábios gretados, umas sobrancelhas quase
inexistentes, uns ralos fios grossos no queixo. Levei as mãos ao rosto como se
quisesse comprovar o espetáculo aterrador e percebi que minhas mãos estavam
enrugadas, repletas de nós, as unhas amarelecidas. Meus olhos estavam
injetados. Via-me velho, era como se eu estivesse diante da eternidade. É este
o aspecto da eternidade, encanecido. A eternidade é um corpo pesado, amarelo,
de cheiro forte. A eternidade é crua e viscosa, tem o firme propósito de
acabar, mas existe uma força que a impele a permanecer num constante estado de putrefação.
Sim, usamos drogas. Sim, somos todos hipócritas!
Quando deixei de mirar o espelho, passada a vertigem da
eternidade, vesti-me de renovadas aparências e fui comer mais pernil.